quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

CAPITAL SOCIAL E ACESSO À SAÚDE PÚBLICA

Figura extraída do endereço: http://www.treebranding.com/blog/?p=1553

Revisitando a carta escrita por Lígia Bahia, e aqui transcrita (13/01/2011), diversos aspectos me chamaram a atenção. Dentre eles, aquilo que a autora fala sobre “as batalhas para conseguir atendimento na rede pública”, citando como uma das estratégias para isso, o contato essencial com alguém ‘de dentro’. Fazer contato com alguém “de dentro” ou “de fora”, é esse o aspecto que discuto, junto com Maneschy & Alberto, em artigo intitulado Capital social e acesso à saúde pública: uma proposta de análise de redes sociais informais de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), publicado (versão completa) nos Anais do II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte (2010) - http://www.sbsnorte2010.ufpa.br/site/anais/html/gt4.html (GT -04)






Partimos de algumas formulações acerca do conceito de capital social, presentes na literatura sociológica, para considerar a possibilidade de redes sociais informais, estabelecidas entre usuários do SUS, permitirem que parcela significativa da população que dele depende, tenha acesso aos serviços públicos de saúde ofertados na rede e, nesse sentido, sua importância quanto à universalização do sistema. Além disso, consideramos o pressuposto de que as interações sociais entre os indivíduos possam resultar em ações cooperativas que influam no acesso que eles têm aos cuidados de saúde. Assim, não se pode atribuir tal acesso apenas à sua capacidade de absorção, própria dos mecanismos instituídos pelos agentes que pensam a gestão do sistema. Essa pressuposição está relacionada à originalidade e ao poder heurístico em que a noção de capital social está assentada, ou seja, nas consequências positivas da sociabilidade, e na possibilidade dessa última ser fonte privilegiada de poder e influência, assim como de acesso a bens e serviços aos quais comumente os participantes não teriam acesso, não fosse a ativação de suas redes de relações sociais. Afinal, como afirmam Fleury, Coelho e Pache (2007), embora o total de investimento em saúde (SUS e saúde suplementar) no Brasil não seja tão diminuto como se costuma pensar, ainda “estamos produzindo uma desigualdade brutal no acesso a serviços” (p. 310). E prosseguem: “Não conseguimos, até aqui, sequer fazer com que esta desigualdade resulte em algum benefício para os menos favorecidos usuários do SUS”. Para nós, as interações sociais entre os usuários os têm levado, por meio de ações cooperativas, ao acesso desejado. Por isso, defendemos que a capacidade resolutiva dos problemas, centrada nos mecanismos instituídos pelos agentes que pensam a sua gestão, é reduzida.


Para grande parte da população, a falta de acesso às políticas públicas de modo geral, e aos cuidados de saúde em particular, ainda parece ser vista por um prisma naturalizador, reforçado por uma tradição de precariedade no usufruto de direitos sociais. Muitas vezes vê-se a prestação de serviços dessa natureza como um favor prestado, principalmente àqueles que não têm recursos financeiros para aceder aos cuidados de saúde. Para essas pessoas, parece não haver a convicção de que se trata de uma garantia constitucional (PORTUGUAL, 2005). “As expectativas de obter uma boa assistência no sistema público são extremamente reduzidas, sendo sustentadas pela ideia de que ‘não se paga, é-se mal servido‘” (p. 9).


Ao final, apontamos a necessidade de que as ações institucionais também estejam voltadas aos mecanismos informais empregados pela população em sua busca de acesso aos cuidados em saúde.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O BAZAR DA SAÚDE PÚBLICA

Ligia Bahia



Comentários sobre as batalhas para conseguir atendimento na rede pública e marcar consultas via planos de saúde viraram arroz de festa. Raras são as reuniões familiares ou encontros entre amigos que deixem de reservar tempo para indexar novos capítulos aos manuais de sobrevivência. Prevê-se que em 2011 as melhores armaduras serão inteiramente revestidas de meias-verdades.  Para marcar a consulta num prazo razoável deve-se anunciar como cliente particular e na hora de acertar o pagamento apresentar a carteirinha do plano. Em relação a muitos serviços públicos além do imprescindível contato com alguém “de dentro” recomenda-se adicionalmente referir uma ou mais doenças bem compatíveis com as especialidades do estabelecimento. No entanto, as identidades positivas de rico, capazes de bancar o tratamento, ou negativas, forjadas na afirmação de uma cidadania biológica, saturada por preconceitos historicamente acumulados, servem apenas para furar barreiras de acesso. Não é usual que a desconfiança acerca das instituições de saúde se  estenda aos médicos. Pagamento injusto para quem muito estudou, instalações físicas precárias e os aviltantes valores de remuneração dos planos privados atraem solidariedade. Só para lembrar: o baixo índice de confiança no sistema público de saúde decresceu de 49 para 47 entre 2009 e 2010, enquanto 70% dos brasileiros declararam, no ano passado, confiar nos médicos que os atenderam.
Às voltas com os desfalques nas equipes de emergência, em UPAs e Unidades de Saúde da Família e pressões e greves de especialistas, os órgãos responsáveis buscam explicar e suprir a falta de médicos. Mas até agora não conseguimos nos desvencilhar da polêmica sobre se temos escassez ou excesso de médicos mal formados. As propostas se alternam. Ora se enfatiza a criação de novos cursos, melhor aproveitamento de recém-formados por meio da instituição do serviço civil obrigatório, mudanças para a residência e regras mais flexíveis para o trabalho de médicos estrangeiros ou brasileiros formados em outros países, ora sugere-se a intervenção na formação e performance dos médicos por meio de exames sistemáticos.
Todos têm razão. Em 2007, considerando o tamanho de cada população, o Brasil formou menos médicos (5,4 por 100.000 habitantes) do que os EUA (6,3) e Reino Unido (9,2). Por isso, em 2008, o indicador brasileiro de 1,73 médicos por 1.000 habitantes foi inferior ao de ambos os países mencionados (2,43 e 2,61 respectivamente). E não dá ignorar as evidências sobre as deficiências nos cursos médicos. No último exame realizado para recém-graduados em São Paulo, houve muitos erros nas respostas relativas ao diagnóstico e tratamento de sífilis, hanseníase e tuberculose.
Mas, para não rezar a missa pela metade, é preciso se levar em conta circunstâncias pouco decantadas. A maioria dos médicos trabalha no SUS e simultaneamente em consultório particular. O quanto de dedicação ao público e ao privado varia. A carga horária dedicada às instituições governamentais era mais condizente com as assimetrias de renda da população. Não ocorreu qualquer êxodo - trabalhar no público e no privado é regra – mas a repartição do tempo mudou. Junto com a privatização vieram instabilidade, jornadas de trabalho prolongadas, perda de autonomia e a ascensão de diversas modalidades de empreendimentos médicos, sempre localizados nas regiões mais desenvolvidas,  e as cobranças por fora.
Atualmente, inúmeros médicos são na prática empresários de si mesmo: os denominados PJs (pessoas jurídicas), tratando-se mais de uma forma de contratação, dotada de vantagens fiscais, do que empresariamento. Outros tantos, no rastro da expansão dos empreendimentos diagnósticos e terapêuticos, tornaram-se proprietários. O terceiro grupo de controladores de ações de empresas setoriais de grande porte é ultra-seleto. Poucos são efetivamente donos do bazar. O efeito mais disseminado da privatização é o autoreferenciamento – consiste na indicação de procedimentos e medicamentos que remuneram de variadas formas quem os solicitam. As meritórias iniciativas do Conselho Federal de Medicina para coibir as relações entre médicos e fabricantes e distribuidores de insumos, isoladas, se mostraram insuficientes para desequilibrar a balança para o lado do oficio.
Portanto, o inflacionamento dos atuais postos de trabalho sem mudanças nas regras que regem as responsabilidades institucionais poderá até ser útil para os contratantes de médicos. Mas, a tendência de ampliação de oferta e redução do preço da remuneração dos médicos não gerará mais acesso e qualidade da atenção para os usuários. Para deslocar a discussão da mera falta ou sobra é preciso desvelar outras engrenagens do trabalho médico. Não podemos nos dar ao luxo de substituir a realidade por exercícios de coerência formal que enfeitam promessas evasivas. O fato de os médicos brasileiros serem empregados de muitos patrões e a corrida em direção aos maiores valores de remuneração custa muito caro à sociedade. Se homens e mulheres são iguais entre si, apesar das diferenças, um sistema propositalmente descoordenado, movido por interesses nem sempre condizentes com as necessidades de saúde alonga a estratificação social. Futuros imaginados com base na supressão e não na elaboração e enfrentamento das contradições poderão eternizar a  briga estéril sobre o que mais falta: dinheiro, médicos ou gestão.

Ligia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no Jornal O Globo, em 10/01/2011.